segunda-feira, 30 de maio de 2011

UM EMPLASTRO CHAMADO PALOCCI





Aquilo que no passado o PT chamava de ‘esforço de militância’ confunde-se, cada vez mais, com mera ‘manobra de milícia’
28 de maio de 2011 | 16h 00

Francisco Foot Hardman

É lamentável que, defronte a esse território opaco dos segredos de uma firma chamada Projeto, protegida por uma fortaleza de "confidencialidades", deva-se ora constatar: o primeiro governo Dilma cambaleia, há menos de cinco meses de um início tão promissor. Mesmo que o prazo da sua sobrevivência se mostre incerto, afeito ainda a várias circunstâncias, já a hemorragia política letal do seu maior ministro não há como estancar, e nenhum expediente terapêutico ou jogada de craque deste que foi definido por Lula como "o Pelé da economia" - seria mesmo Pelé ou estaria mais para Ricardo Teixeira? - parecem, agora, poder reverter.

Ed Ferreira/AE
O chefe da Casa Civil, Antonio Palocci

Se o regime fosse parlamentarista, essa agonia seria visível a olho nu. No presidencialismo ultracentralizado, personalista e fisiológico, em que se funda o sistema político e partidário, talvez se mostre menos evidente, e aí também o perigo maior para o futuro do governo. A derrota na votação do Código Florestal na Câmara foi fragorosa, o PMDB deliberadamente decidiu terçar lanças e testar suas forças contra PT e Planalto. Seria diferente se a Casa Civil estivesse a todo vapor cumprindo sua função política primordial? Difícil responder, mas percebe-se que o jogo de silêncio e tergiversação com que o ex-prefeito de Ribeirão Preto repete, no estilo e no conteúdo, encenações passadas, porém não esquecidas, deixou não só a base aliada à deriva, mas atingiu agora seu ponto de saturação. E o retorno do processo do caseiro Francenildo, neste instante, só tende a agravar todo um quadro suspeitoso.


A entrada em cena de Lula, garantindo respiro no curto prazo, parece destilar veneno também contra a estabilidade e força de sua maior criatura política. Estranha coreografia, essa, a do ex-presidente, diante do desastre anunciado, mal contido em sua desenvoltura de pai soberano e onipresente, recomendando a insistência no emplastro que já se sentia como encosto, como xarope ruim, como receituário incômodo e altamente dispendioso para a economia política do governo. "Tá rindo de quê?", seria a pergunta natural, diante do indisfarçável euforia com que o "Pelé da política" retornava aos meandros do oligarquismo e do personalismo com que ele tanto soube pactuar.


A tragédia no Brasil moderno, no entanto, é sempre mais vasta. Na solidão do Planalto, em algum pequeno instante iluminado, é de se esperar que a presidente Dilma avalie a dimensão do estrago e as perspectivas de desenlace que a liberem desse emplastro hoje impróprio, correndo de si mesmo nas torrentes do inexplicável e nos vícios das amizades capitais, cercado de assessores laranjas e de homens-dispositivos, servidor desregulado aos movimentos do senhor sem nome e sem pátria que alguém alcunhara, há quase 150 anos, de Das Kapital. Ele não era, ao que conste, o eleito de Dilma, bem ao contrário. Sua aceitação significou reverência ao lulo-petismo. Talvez a autonomia requerida para que a grande governante possa despontar se insinue exatamente aqui, nesta encruzilhada a que todo fel da derrota expõe. O primeiro governo Dilma declinou cedo, mas sua chefe pode agora reunir forças para um próximo período, e avançar nas reformas inadiáveis prometidas, livre de um estorvo que não criou, mas cuja proteção, a continuar, lhe custará, certo, muito caro. O preço da hoje tão nomeada blindagem, em face a um PT há muito esquecido dos trabalhadores, a uma base aliada predominantemente conservadora, chegando às raias da pura reação no caso do Código Florestal, já se manifesta algo brutal. Aquilo que no passado se dizia "esforço de militância" confunde-se, cada vez mais, com mera "manobra de milícia". Que, mercenária como qualquer milícia, arredia a toda regulação, clandestina e turva, empareda-se afinal àqueles serviços que alcançam "enorme valor", frutos de uma "experiência única".


Longe dos alaridos enganadores do poder e dos amigos da onça, a presidente Dilma poderia ensaiar exercício imaginário de contrapor a opacidade gritante do enriquecimento vertiginoso do ministro ex-Libelu à clareza cristalina da palavra pobre e rara da professora Amanda Gurgel, há dias, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Já que muita vez o soberano, na solidão de seu posto, é obrigado a escolher sob qual voz melhor se inspirar. Ou sob qual espírito. Nessa semana, em Brasília, enquanto se investia tanta energia inútil em salvar aparências e manter velhos interesses intactos, nos sertões amazônicos do Pará, mais uma vez, a história se repetiu como tragédia, e não houve chance nem apelo para os líderes extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados a mando de desmatadores.


Processos aparentemente isolados, mas em íntima conexão: a paralisia de um governo às voltas com sua Casa Civil convertida momentaneamente em casamata de segredos espúrios, em cofre-forte de fugas da realidade, é a outra face do Brasil, esse do povo trabalhador e guardião da floresta, esse das professoras heroínas e alunos desamparados. A presidente Dilma sabe, sem vacilo, para onde conduz a incúria do Estado e a ganância dos mercados.


FRANCISCO FOOT HARDMAN É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA NA UNICAMP

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